Arte e ciência em Leonardo da Vinci - Geologia e Simbologia em A virgem dos Rochedos
Em 1866, enquanto o mundo iluminista abria as portas para as percepções e organização sistemática das linguagens científicas, Hipppolyte Taine, filósofo e historiador que, tal como Leonardo da Vinci, interessara-se por diversas áreas do conhecimento, em sua obra Philosophie de l'art en Italie : leçons professées à l’École des beaux-arts (Filosofia e a arte na Itália: lições professadas pela Escola de Belas Artes) escreveu sobre um apontamento importante acerca do gênio fiorentino: "Talvez não haja em todo o mundo um só exemplo de um gênio tão inventivo, tão incapaz de se contentar, tão ávido de infinto, tão naturalmente refinado, tão voltado para o futuro, para além do seu século e dos séculos seguintes. As suas figuras exprimem uma sensibilidade e um espírito inacreditáveis; regurgitam de ideias e de sensações não expressadas."
Essa notória capacidade de observação criteriosa do mundo e sua constante busca pela perfeita representação do mundo e dos fenômenos que nele se sucedem fizeram de Leonardo da Vinci algo de inclassificável. Para muito além de um virtuoso artista, da Vinci foi um homem das muitas linguagens, um verdadeiro polímata, mas acima de tudo, um dos precursores do pensamento científicos da era moderna no Ocidente desenvolvido no revolucionário Século XVI.
O grande gênio fazia uma observação sistemática da natureza, algo que, de acordo com os registros biográficos, remontam à infância livre e lúdica que ele vivera nas montanhas de Toscana.
Anchiano, cidade natal de Leonardo e local onde ele passara a primeira infância, é "paesino" (na Itália, essa categoria se refere a uma localidade menor que uma villa) medieval que dista, aproximadamente 58 Km de Vinci (villa próxima de Firenze). No alto de uma grande montanha verdejante situa-se a casa da sua família e, era dali, que ele, a única criança do seio familiar por muitos anos, se detinha a olhar os muitos tons de verde que inundam a paisagem e cintilam ao sol da Toscana, a imaginar desenhos em nuvens, a correr contra o vento e intrigar-se com as corredeiras dos rios que brotam no entorno.
É consenso dos críticos de arte que Leonardo transpusera todos esses elementos da natureza para sua obra pictórica e, mais, construiu um legado de aproximadamente 6000 páginas de estudos empíricos que incluam observação, registro, acompanhamento e padronização de sistemas eternizados em seus 200 cadernos de anotações, conhecidos atualmente pelo apelativo de "Codex".
Dentre as muitas representações criteriosas que Leonardo fez de suas observações atentas à natureza está o quadro "A virgem dos Rochedos", o qual destacamos pela sua aproximação científica da geologia e botânica.
Pintado em duas versões muito similares, mas com importantes detalhes conceituais que as distinguem entre si, a primeira versão foi realizada pelo artista entre os anos de 1482/1483 a 1485/1486 (a flexibilidade de datas se refere a divergência do calendário adotado em Firenze à época) e está exposta no Museu do Louvre em Paris, já a segunda versão, foi iniciada entre 1495 e concluída entre 1506/1508, encontra-se na National Gallery de Londres e, provavelmente, foi construída no seu ateliê em colaboração com Ambrogio de Predis, seu amigo e colaborador do tempo que passou em Milano, na corte de Lodovico "O Mouro".
Ambas as obras foram realizadas por encomenda para Leonardo e os irmãos Predi (Ambrogio, Evangelista e Cristoforo) e, por sinal, a comissão partiu da mesma entidade, já que a primeira não teria atendido às severas especificações contratuais e, por conseguinte, fora vendida a outra pessoa. Detalhe, a comissão havia sido paga, ao menos boa parte dela, o que significa que eles receberam em duplicada pelo mesmo trabalho, ainda que, anos mais tarde, tenham sido obrigados a realizar uma nova representação (2 versão da Virgem dos Rochedos), desta vez mais adequada aos dispositivos principais do descritivo, novamente construíram uma cena que quase nada se adequava aos cânones da Igreja.
Aqui nos deteremos a pensar sobre a primeira versão.
O retábulo encomendado pela Ordem Franciscana, para o qual Leonardo ficara encarregado de pintar a área central, continha as seguintes instruções: "ele deveria mostrar a Virgem Maria '(seu vestido tem que ser carmim com borcados folhados a outro, pintado a óleo e envernizado com laca de boa qualidade' e o Menino Jesus cercados por ' anjos pintados a óleo à perfeição, junto aos dois profetas'.
Contudo, obedecendo sua capacidade metalinguística de expressar o discurso desejado por meio de signos e símbolos sutis que assumem as vezes de detalhes e adornos, sua capacidade de obsessiva de representar a natureza e seus fenômenos, seu gênio criativo e seu toque de rebeldia, da Vinci decidiu pintar a Virgem Maria vestindo um manto azul, um anjo andrógino que aponta para o jovem João Batista que se equilibra sobre uma pedra com as mãos e é amparado Virgem, e o Menino Jesus que o abençoa. Note-se que João Batista, padroeiro de Firenze e santo de alta devoção de Leonardo, nem havia entrado na história original da encomenda.
O cenário também toma vida própria frente ao orientado pelos mecenas,uma vez que o contrato dizia: "as montanhas e as pedras devem ser pintadas a óleo", Leonardo constrói a partir disso algo de profundamente emblemático, tanto do ponto de vista simbólico, como científico, pois a cena está inserida em uma gruta úmida e sombria donde a luz prevalecente vem das figuras humanas que ali se encontram.
Simbolicamente, as grutas e rochas de modo geral sempre foram tomados por sua capacidade de oferecer refúgio/abrigo dos males externos, e podem portanto, explicar parte do cuidado que o pintor teve ao retratar com riqueza de detalhes o fundo rochoso e as escarpas nas pedras do primeiro plano, acentuando a noção de profundidade e a sensação de distância protetora.
Não obstante isso, há a relevante conexão entre a visão de mundo da Ordem Franciscana que tinha a montanha como símbolo religioso de aproximação do Homem com a Natureza e, por consequência, conexão com o Divino. Ainda na senda da metalinguagem, Leonardo pode ter incutido um outro sentido figurativo com a construção deste cenário árido e rochoso, pois seria este o elemento aglutinador de várias passagens das histórias de vida de São João Batista à de São Francisco de Assis, uma vez que tanto em nas crônicas que registraram suas vidas, como na visão que se cristalizou sobre eles no imaginário coletivo, ambos estão estreitamente associados à localidades como esta. Para João Batista temos o momento em que este se retira para o deserto a fim de cumprir o seu destino e, para Francisco de Assis, fica marcado o episódio no qual ele se retira para o monte La Verna, em 1222, após o qual se torna um estigmata.
Contudo, o aspecto dos registros científicos desta obra são ainda mais impressionantes para a época na qual foi elaborada. De acordo com Pizzorusso APUD Isaacson, Leonardo representou tão bem os aspectos da geologia que seria impossível desconsiderar esta como a primeira obra de registro pictográfico preciso e científico distintivo de formações rochosas sedimentares. Com traços precisos e uma delicada composição de técnicas que misturam a perspectiva e chiaro/scuro para atribuir realidade ao ar que preenche a gruta, todo o entorno é preenchido por formas de arenito cinza azulado desgastadas e escarpadas por forças naturais do vento e da água , em contraposição, no canto superior direito, pouco acima da cabeça da Virgem, há rochas salientes, altas e pontiagudas, reluzentes ao sol e que, provavelmente, remetem à rochas ígneas intrusivas, resultado do resfriamento de de lava vulcânica, processo geológico muito distinto do processo milenar que compõe o arenito sedimentar do interior da caverna.
Outro ponto relevante da eficiência científica registrada no cenário que compõe a obra é o fato que as múltiplas plantas ali presentes estão situadas em pontos diversos do solo e do teto da caverna, precisamente, onde se pode observar a presença do arenito que, por sua própria natureza porosa, maleável úmida é capaz de reter e germinar sementes mais eficientemente que as rochas ígneas.
Apesar de sua "natureza" curiosa e exploratória, não é certo que Leonardo tenha convivido e/ou visto de perto todas essas formações e as múltiplas plantas que representou neste e em outros quadros, entretanto, é sabido, por meio dos registros no Codex Atlanticus que ele foi um grande apaixonado por geologia e botânica e, com seu acurado senso científico, dedicou sua vida a observar e/ou pesquisar sobre essas áreas para que pudesse cumprir um dos pilares da arte renascentista com maestria, o pleno domínio da natureza para bem representá-la, o que explicaria sua imensa e profunda produção escrita, bem como, suas, quase sempre, inacabadas obras pictográficas.
REFERÊNCIAS:
ISAACSON, W. Leonard da Vinci. Rio de Janeiro: Intrinseca, 2017.
TAINE, H. Philosophie de l'art en Italie : leçons professées à l’École des beaux-arts, éditions Germer Baillière, 1956.
ZÖLLNER. F. Leonardo da Vici. Obra Completa, Lisboa, Taschen, 2003.
Essa notória capacidade de observação criteriosa do mundo e sua constante busca pela perfeita representação do mundo e dos fenômenos que nele se sucedem fizeram de Leonardo da Vinci algo de inclassificável. Para muito além de um virtuoso artista, da Vinci foi um homem das muitas linguagens, um verdadeiro polímata, mas acima de tudo, um dos precursores do pensamento científicos da era moderna no Ocidente desenvolvido no revolucionário Século XVI.
O grande gênio fazia uma observação sistemática da natureza, algo que, de acordo com os registros biográficos, remontam à infância livre e lúdica que ele vivera nas montanhas de Toscana.
Anchiano, cidade natal de Leonardo e local onde ele passara a primeira infância, é "paesino" (na Itália, essa categoria se refere a uma localidade menor que uma villa) medieval que dista, aproximadamente 58 Km de Vinci (villa próxima de Firenze). No alto de uma grande montanha verdejante situa-se a casa da sua família e, era dali, que ele, a única criança do seio familiar por muitos anos, se detinha a olhar os muitos tons de verde que inundam a paisagem e cintilam ao sol da Toscana, a imaginar desenhos em nuvens, a correr contra o vento e intrigar-se com as corredeiras dos rios que brotam no entorno.
É consenso dos críticos de arte que Leonardo transpusera todos esses elementos da natureza para sua obra pictórica e, mais, construiu um legado de aproximadamente 6000 páginas de estudos empíricos que incluam observação, registro, acompanhamento e padronização de sistemas eternizados em seus 200 cadernos de anotações, conhecidos atualmente pelo apelativo de "Codex".
Dentre as muitas representações criteriosas que Leonardo fez de suas observações atentas à natureza está o quadro "A virgem dos Rochedos", o qual destacamos pela sua aproximação científica da geologia e botânica.
Pintado em duas versões muito similares, mas com importantes detalhes conceituais que as distinguem entre si, a primeira versão foi realizada pelo artista entre os anos de 1482/1483 a 1485/1486 (a flexibilidade de datas se refere a divergência do calendário adotado em Firenze à época) e está exposta no Museu do Louvre em Paris, já a segunda versão, foi iniciada entre 1495 e concluída entre 1506/1508, encontra-se na National Gallery de Londres e, provavelmente, foi construída no seu ateliê em colaboração com Ambrogio de Predis, seu amigo e colaborador do tempo que passou em Milano, na corte de Lodovico "O Mouro".
Ambas as obras foram realizadas por encomenda para Leonardo e os irmãos Predi (Ambrogio, Evangelista e Cristoforo) e, por sinal, a comissão partiu da mesma entidade, já que a primeira não teria atendido às severas especificações contratuais e, por conseguinte, fora vendida a outra pessoa. Detalhe, a comissão havia sido paga, ao menos boa parte dela, o que significa que eles receberam em duplicada pelo mesmo trabalho, ainda que, anos mais tarde, tenham sido obrigados a realizar uma nova representação (2 versão da Virgem dos Rochedos), desta vez mais adequada aos dispositivos principais do descritivo, novamente construíram uma cena que quase nada se adequava aos cânones da Igreja.
Aqui nos deteremos a pensar sobre a primeira versão.
O retábulo encomendado pela Ordem Franciscana, para o qual Leonardo ficara encarregado de pintar a área central, continha as seguintes instruções: "ele deveria mostrar a Virgem Maria '(seu vestido tem que ser carmim com borcados folhados a outro, pintado a óleo e envernizado com laca de boa qualidade' e o Menino Jesus cercados por ' anjos pintados a óleo à perfeição, junto aos dois profetas'.
Contudo, obedecendo sua capacidade metalinguística de expressar o discurso desejado por meio de signos e símbolos sutis que assumem as vezes de detalhes e adornos, sua capacidade de obsessiva de representar a natureza e seus fenômenos, seu gênio criativo e seu toque de rebeldia, da Vinci decidiu pintar a Virgem Maria vestindo um manto azul, um anjo andrógino que aponta para o jovem João Batista que se equilibra sobre uma pedra com as mãos e é amparado Virgem, e o Menino Jesus que o abençoa. Note-se que João Batista, padroeiro de Firenze e santo de alta devoção de Leonardo, nem havia entrado na história original da encomenda.
O cenário também toma vida própria frente ao orientado pelos mecenas,uma vez que o contrato dizia: "as montanhas e as pedras devem ser pintadas a óleo", Leonardo constrói a partir disso algo de profundamente emblemático, tanto do ponto de vista simbólico, como científico, pois a cena está inserida em uma gruta úmida e sombria donde a luz prevalecente vem das figuras humanas que ali se encontram.
Simbolicamente, as grutas e rochas de modo geral sempre foram tomados por sua capacidade de oferecer refúgio/abrigo dos males externos, e podem portanto, explicar parte do cuidado que o pintor teve ao retratar com riqueza de detalhes o fundo rochoso e as escarpas nas pedras do primeiro plano, acentuando a noção de profundidade e a sensação de distância protetora.
Não obstante isso, há a relevante conexão entre a visão de mundo da Ordem Franciscana que tinha a montanha como símbolo religioso de aproximação do Homem com a Natureza e, por consequência, conexão com o Divino. Ainda na senda da metalinguagem, Leonardo pode ter incutido um outro sentido figurativo com a construção deste cenário árido e rochoso, pois seria este o elemento aglutinador de várias passagens das histórias de vida de São João Batista à de São Francisco de Assis, uma vez que tanto em nas crônicas que registraram suas vidas, como na visão que se cristalizou sobre eles no imaginário coletivo, ambos estão estreitamente associados à localidades como esta. Para João Batista temos o momento em que este se retira para o deserto a fim de cumprir o seu destino e, para Francisco de Assis, fica marcado o episódio no qual ele se retira para o monte La Verna, em 1222, após o qual se torna um estigmata.
Contudo, o aspecto dos registros científicos desta obra são ainda mais impressionantes para a época na qual foi elaborada. De acordo com Pizzorusso APUD Isaacson, Leonardo representou tão bem os aspectos da geologia que seria impossível desconsiderar esta como a primeira obra de registro pictográfico preciso e científico distintivo de formações rochosas sedimentares. Com traços precisos e uma delicada composição de técnicas que misturam a perspectiva e chiaro/scuro para atribuir realidade ao ar que preenche a gruta, todo o entorno é preenchido por formas de arenito cinza azulado desgastadas e escarpadas por forças naturais do vento e da água , em contraposição, no canto superior direito, pouco acima da cabeça da Virgem, há rochas salientes, altas e pontiagudas, reluzentes ao sol e que, provavelmente, remetem à rochas ígneas intrusivas, resultado do resfriamento de de lava vulcânica, processo geológico muito distinto do processo milenar que compõe o arenito sedimentar do interior da caverna.
Outro ponto relevante da eficiência científica registrada no cenário que compõe a obra é o fato que as múltiplas plantas ali presentes estão situadas em pontos diversos do solo e do teto da caverna, precisamente, onde se pode observar a presença do arenito que, por sua própria natureza porosa, maleável úmida é capaz de reter e germinar sementes mais eficientemente que as rochas ígneas.
Apesar de sua "natureza" curiosa e exploratória, não é certo que Leonardo tenha convivido e/ou visto de perto todas essas formações e as múltiplas plantas que representou neste e em outros quadros, entretanto, é sabido, por meio dos registros no Codex Atlanticus que ele foi um grande apaixonado por geologia e botânica e, com seu acurado senso científico, dedicou sua vida a observar e/ou pesquisar sobre essas áreas para que pudesse cumprir um dos pilares da arte renascentista com maestria, o pleno domínio da natureza para bem representá-la, o que explicaria sua imensa e profunda produção escrita, bem como, suas, quase sempre, inacabadas obras pictográficas.
REFERÊNCIAS:
ISAACSON, W. Leonard da Vinci. Rio de Janeiro: Intrinseca, 2017.
TAINE, H. Philosophie de l'art en Italie : leçons professées à l’École des beaux-arts, éditions Germer Baillière, 1956.
ZÖLLNER. F. Leonardo da Vici. Obra Completa, Lisboa, Taschen, 2003.
Detalhe da Obra a Virgem dos Rochedos 1 Versão - São João Batista |
Detalhe da Obra a Virgem dos Rochedos 1 Versão - Menino Jesus |
Obra a Virgem dos Rochedos 2 Versão - National Gallery of London |
Obra a Virgem dos Rochedos 1 Versão - Museé du Louvre à Paris |
Detalhe da Obra a Virgem dos Rochedos 1 Versão - representações rochosas |
Quanta riqueza de detalhes, gostei muito desta publicação.
ResponderExcluirQue bom que gostou!!! 💜⚜ obrigada pelo retorno!
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