Lorenzo: O mestre de cerimônias nato

"O lume de centenas de candeeiros que percorriam a Via Larga luzia, as chamas cintilando na fina areia branca espalhada sobre as pedras do calçamento para abafar o barulho dos cascos. O sol se punha por trás das montanhas, pessoas começaram a encher os bancos ao longo dos palácios. Todas as janelas estavam apinhadas de homens e mulheres, todos esticando o pescoço para ver melhor. Estandartes resplandescentes cobriam as escuras fachadas de pedra bruta: neles, lírios vermelhos da República Florentina, arcos dourados dos Piccolomni de Siena - agora acrescidos das chaves e da coroa, mostrando a ascensão de um dos seus, Aeneas Silvius, ao trono papal, como Pio II  -, o galgo retesado sob o pinheiro, representando os Sforza, de Milão, e, acima de todos,  o escudo dourado adornado com as bolas vermelhas dos Médici. (...)"

A descrição acima nos situa em uma das muitas oportunidades nas quais Lorenzo de Medici atuaria como um verdadeiro diplomata desde a mais tenra idade. No relato em questão, a recepção do Papa Pio II em Florença em 1559, o jovem Medici tinha apenas dez anos e, embora não seja o primeiro registro desta natureza que marca sua biografia, foi, certamente, um episódio marcante.

O contexto dos fatos nos dão a direção: Pio II, oriundo de importante família de Siena, cidade historicamente inimiga declarada de Florença, e agora representante dos Estados Papais, precisava ser conquistado como aliado antes que a tradicional rivalidade dos povos vizinhos o colocasse no confronto direto com os florentinos e ameaçasse a tão garbada autonomia daquela República.

A estratégia da Signoria de Florença foi clara, uma série de eventos foram programados para agradar ao Papa e mostrar-lhe a multifacetada cultura florentina e articular a população em prol de impressionar  ao pontífice. Naquele 29 de abril de 1559, havia uma miríade de oportunidades de entretenimentos espalhadas pelo centro histórico da cidade, desde torneio entre filhos das mais proeminentes famílias da aristocracia na Piazza di Santa Croce portando armaduras cerimoniais completas, seguido de um requintado baile no Mercato Nuovo com a presença de 60 jovens cavalheiros, moças e donzelas ricamente  vestidos, adornados com joias requintas e as raríssimas pérolas, até um sangrento espetáculo organizado pelos priores numa paliçada na Piazza della Signoria, que pretendia remontar os tempos do Coliseu romano, na qual foram colocados cavalos, vacas, um urso selvagem e, até mesmo, dois leões - simbolizando Marte, o primeiro protetor do povo florentino. 

Contudo, de acordo com os registros históricos, o Papa dissera que haviam gastado pouco para entretê-lo e, "embora tenham trazido dois leões à Piazza, para lutar com cavalos e outros animais, e organizado torneios nos quais mais vinho foi bebido do que sangue derramado.", pois, amedrontados pelos clamores da multidão que acedera ao centro do poder administrativo da cidade, as feras nada mais fizeram que caminhar de um lado para  o outro.

Além dos eventos públicos, Piero havia planejado um desfile noturno e uma recepção na Casa da Via larga,  ocasião retratada na citação de abertura, que seria a solução encontrada pela Família Medici para aliviar o fiasco do dia transcorrido.

Saindo da Piazza San Marco ao som de flautas  e trompetes agudos bem marcados por tambores marciais, 30 músicos, porta estandartes e 12 jovens cavaleiros da Brigata de Lorenzo guarnecidos por seus escudeiros e criados, todos ricamente vestidos com librés que ostentavam o escudo de armas de seu senhor, o jovem Medici, que vinha logo na sequencia, em posição de destaque e com aspecto esplendoroso  antecipava a carruagem que encerrava o cortejo a representar "Triunfo do Amor".

À luz de tochas bruxuleantes, o espetáculo deve ter sido realmente impressionante, ainda mais porque o "popolo minore", a população em geral, muito afeita à família de comerciantes e banqueiros por suas políticas populares e sua constante interação cotidiana, aclamava o menino de apenas dez anos com fervor.

O cortejo, em suas armaduras brilhantes e reluzentes à luz das tochas, seguiu até o Battistero de San Giovanni, onde se posicionaram de frente para o edifício da Via Larga e simularam uma Justa que deu uma tônica de realeza medieval, já tardia para a época, mas ainda muito apreciada e, principalmente, romantizada, rendendo assim, o efeito desejado no Papa graças ao ar suntuoso e ao mesmo tempo leve do pequeno "Signore".

Ao que parece, seu avô Cosimo e seu pai Piero, notaram na mais tenra idade a habilidade nata do jovem herdeiro para a diplomacia e cerimoniais. Ainda aos 05 anos Lorenzo foi ricamente vestido, de acordo com a recente e predominante moda da corte francesa e envido aos portões da cidade, junto  da comitiva de autoridades diplomáticas, para saudar o Duque de Anjou. Conforme contam as crônicas, o menino rendeu comentários e gestos mais dignos de um refinado adulto que de um "piccolo bimbo".
 
Lorenzo tinha uma personalidade sociável, decidida, porém flexível e articuladora, de pensamento rápido e loquaz, era capaz de comunicar-se com a mesma espontaneidade e facilidade com um alto mandatário como com beber, jogar e conversar em tabernas da cidade. Em suma, era um diplomata por excelência, o  único capaz de alinhavar acordos entre os representantes de grupos antagônicos da delicada e beligerante geopolítica renascentista, mantendo a paz até o momento de sua morte em 1492.

Dada a sua exposição em eventos públicos desde cedo e sua fala fácil, o pequeno era procurado por cidadãos florentinos para que intermediasse pedidos de favores junto ao avô e o pai mesmo tendo não mais que 11 anos.

Apesar de uma vida de conciliações, manobras políticas e ajustes comerciais que favoreçam e entrelaçaram de uma vez por todas a história da Família e da cidade de Florença, Lorenzo não suportava as intrigas e a hipocrisia com a qual devia lidar todos os dias, portanto, não raro, o herdeiro Medici se isolava nas áreas verdejantes da toscana, e nas Villas Medici dos arredores da cidade, para relaxar, festejar, receber amigos, ler e escrever poemas, pois, não obstante sua grande habilidade inata, a verdadeira paixão sempre fora a Literatura e as Belas Artes, o que, certamente, fez dele o Mecenas dos maiores gênios da renascença e marcou esse traço como um gen na herança da Família Medici.



Afresco de Benozzo Gozzoli na capela da casa da Via Larga representando a Família Medici na "Cavalgada dos Magos".  Supostamente, Lorenzo de Medici fora representado no primeiro cavalo branco, visto lateralmente, possivelmente com a idade de 09 ou 10 anos, e tanto a estrutura do cortejo, como suas vestes fazem alusão à 29 de abril de 1559,  ocasião em que o jovem Medici exercitou suas habillidades diplomáticas na recepção ao Papa Pio II. 
No detalhe do afresco de Gozzoli o suposto  jovem Lorenzo. 


  FONTE: UNGER, M.J. O Magnífico. São Paulo: Larrousse do Brasil, 2009. 

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