Capela Sistina e Michelângelo - uma herança do mecenato da Família dos Médicis






Em 01 de novembro de 1512 foi aberta ao público pela  primeira vez a Capela Sistina que, na ocasião, causou grande impacto a críticos e admiradores de arte; esse mesmo sentimento de espanto, admiração, assombramento e reverência à majestosa obra de arte de Michelângelo ainda é vivenciada e expressa por seus milhares de visitantes após mais de 500 anos de sua conclusão.

Fruto de um magnífico trabalho de 4 anos de execução exaustiva de Michelângelo e sua equipe, trabalhando a técnica do "afresco", ou seja, execução da pintura no teto enquanto o gesso ainda está fresco, o que exigia a precisa combinação de rapidez e precisão a serem dispostos harmoniosamente em uma extensão de 40 metros de largura por 13 de comprimento. A bela Capela do complexo papal onde se realizam os conclaves e outras celebrações internas da Igreja Católica,  passou a ser uma das mais emblemáticas dentre as obras de arte do Renascimento, comparável somente à Monalisa de Leonardo da Vinci, porém, sua história de requintes remonta à outra época.

Anteriormente denominada Capela Magna, é rebatizada em homenagem ao Papa Sisto IV, em razão das obras de restauro e ornamentação por ele iniciadas em 1447. Assessorado pela Família dos Médicis, o Papa recebeu a seu encargo os mais brilhantes nomes do cenário artístico renascentista de Florença, todos mecenatos por Lorenzo "O Magnífico",  dentre os quais: Sandro Botticelli, Rafael di Sanzio, Berninni  e Ghirlandaio, o ilustre mestre de Michelângelo. O trabalho, que demorou três anos para ser concluído, contava com belos afrescos nas paredes laterais, um belo retábulo no altar central, rica ornamentação das pilastras e um belíssimo céu estralado.

Quando da ascensão do Cardeal Giuliano Della Rovere ao trono de papal, tornando-se o Papa Júlio II em novembro de 1503, a Igreja Católica assume novos contornos, sendo as duas principais características de seu papado as guerras por expansão territorial e manutenção do poder nos Estados Pontifícios e a construção de símbolos capazes de expressar a grandeza e o alcance de seu poderio, dentre esses símbolos podemos destacar duas grandes encomendas do Papa à Michelângelo: a ornamentação de sua tumba e os afrescos do teto da Capela Sistina, substituindo o céu estrelado executado por ordem de Sisto IV por cenas da Bíblia.

Michelângelo foi uma dos grandes mestes e expoentes do Renascimento. Criado na região campesina da bela Florença do Século XV, levará para sempre consigo o olhar sobre as cores vivazes da "campagna" e o jeito dos homens simples do campo; já na capital da Toscana, provavelmente seduzido pelos elementos muito característicos da região em seu tempo, como o sol que invade as vias e enche tudo de luz ressaltando as cores, a variedade de tons da lã e da seda dos comerciantes de tecido recém tingidas a secar nos varais das botegas, a arte incentivada amplamente pelos Médicis em forma de catedrais, afrescos, retábulos, estátuas, saraus e grandes festas pirotécnicas,  ainda aos 9 anos, o pequeno menino prefere faltar às aulas de latim para desenhar com os amigos perto da Piazza Santa Croce, e começa assim a demonstrar muito mais pendão para as artes plásticas que para as letras, o que rapidamente foi percebido por seu pai e o levou a matriculá-lo como aprendiz no ateliê de Domenico di Ghirlandaio.

Ghirlandaio outro dos grandes mestres do Renascimento, cultivou seu ateliê muitos dos grandes talentos que enriqueceram o mundo da arte. Ali se aprendia  e se exercitava todas as grandes artes: a pintura, o desenho, a escultura, a ourivesaria, a arquitetura,a engenharia bélica, etc. Desde o início, o jovem Michelângelo se destacou entre seus pares, e, logo foi indicado para auxiliar em obras e estudos que estavam sendo realizados no "Giardino de San Marco" de propriedade dos Médicis, e foi ali que ele desenvolveu sem nenhuma aula prévia, sua primeira escultura, o rosto de um fauno inspirado em uma outra máscara exposta no jardim que havia se danificado; dizem que, ao ver o resultado do trabalho, Lorenzo "O Magnífico" imediatamente quis conhecê-lo. Com um histórico de relacionamento conturbado com seu pai, Michelângelo aos 15 anos se vê "adotado" por Lorenzo e passa a viver na suntuosa Casa da Via Larga junto com a Família dos Médicis, sendo criado como um filho pelo "Magnífico". 

Não obstante todo o amor, apoio, incentivo aos estudos à dedicação às artes que recebeu na casa dos Médicis, seu temperamento sempre arredio e um tanto impulso, irritadiço em confronto com a personalidade austera e dominadora de Lorenzo desencadeou algum conflito obscuro, do qual não se tem registros,  apenas especulações, o que fez com que o brilhante e jovem artista fosse embora não só da casa dos Senhores de Florença, mas também da cidade, deixando muitos trabalhos incompletos e muitas fofocas em torno de sua vida.  

Ao longo de toda a sua vida, Michelângelo não se enxergava como pintor, na verdade, sua grande paixão eram as esculturas e, como um espírito livre e criador que era, odiava as obras comissionadas, porém, dependia delas para viver, para poder se dedicar aos seus estudos de anatomia e à sua verdadeira arte, o que considerava um dom de Deus; por conta disso, após a forte insistência do Papa Júlio II, e, apesar dos muitos compromissos com os quais já se encontrava empenhado na época, o artista assumiu a encomenda de pintar o teto da Capela Sistina, que posteriormente, terá um complemento, o painel sobre o altar com as imagens que representam "O Juízo Final", e será executada sob encomenda de um outro Papa, Paulo III.Contudo, essas obras, apesar de magnânimas, não trouxeram qualquer tipo de prazer ou orgulho ou contentamento ao artista, pelo contrário, eram uma enfadonha obrigação. muitos especialistas e estudiosos de arte especulam inclusive se a obra foi realmente executada por ele, e não só idealizada, entretanto, o que sabemos com certeza é que o artista foi contratado para o serviço, fez os estudos preliminares, dos quais constavam a pintura de doze apóstolos em lunetas, tais como ele iniciara a fazer no Duomo Florentino e, nas palavras do próprio gênio: "um ornamento como de costume para preencher a área remanescente", o que ao que parece, ele mesmo esperava que fosse feito por um grupo de assistentes sob a sua direção, e a única coisa que realmente deveria fazer era pintar doze grandes figuras humanas para representar os apóstolos e criar um fundo imaginar um fundo decorativo que se inspirasse nos atos destes mesmos apóstolos, porém, como era comum em Michelângelo, após o início do trabalho, sua mente criativa, de apurado senso estético  e  inquieta mudou de idéia e disse ao Papa que " se somente os apóstolos fossem postos lá, me parecia que a decoração ficaria pobre. Ele me perguntou por quê. Eu disse: 'Porque eles mesmos eram pobres'. Então ele me deu uma nova incumbência, a de fazer o que eu quisesse.", e assim, começou o replanejamento do que que viria a ser o teto afrescado mais famoso do mundo.

É difícil dizer se Michelângelo foi o executor da obra ou não, pois àquela época era comum que em obras grandiosas assim, o comissionado fizesse outros comissionados, mas as anotações de seus livros contábeis, os relatos, registros e até mesmo as pinturas existentes no afresco são contraditórias e por vezes nos fazem crer que ele foi sim o criador e executor do projeto, enquanto por outras, nos coloca em dúvida quanto á sua participação exclusiva. De acordo com GAYFORD (2015:242) "um ponto, porém, está claro. Ele começou a pintar no segundo semestre de 1508 com pelo menos um assistente, um experiente mestre de Florença chamado Jacopo, e o resultado foi desastroso. essa grande obra, que viria a ser o maior dos triunfos de Michelângelo, começou com um fracasso catastrófico e humilhante. Como Michelângelo contou a Condivi: 'depois que ele começou a trabalhar, e terminou a pintura do Dilúvio, o mofo começou a surgir de tal forma que mal se podia discernir as figuras'. Vasari contou a mesma história, que, segundo ele, foi ouvida do próprio Michelângelo. Ele achou que o problema estava no preparo do gesso usado em Roma, que consistia na mistura de cal obtida a partir da pedra local, o travertino, com pozzolana (areia derivada de cinza vulcânica). Essa mistura retém muita umidade e demora muito a secar, causando às vezes uma eflorescência na superfície, como aconteceu."

Esses fatos aparecem registrados em cartas que Michelângelo enviou ao pai se queixando profundamente das obras realizadas na Capela Sistina, e por vezes, nos parece demonstrar que há um grande conflito entre ele e os demais trabalhadores, contudo, não podemos precisar com exatidão quem seriam os protagonistas dos conflitos ou qual a natureza dos mesmos. Seriam derivados apenas do uso do gesso inadequado que o estaria fazendo perder tempo ou também da má execução das pinturas sobre os desenhos efetuados pelo mestre? Há relatos de uma briga entre Michelângelo e Jacopo, o mesmo artista citado anteriormente, ocorrida quando ambos trabalhavam colaborativamente na execução de um retábulo em Bologna. Esta briga teria influenciado as desavenças relativas ao afresco? 

Assim como na afirmação contida na carta que enviou ao pai sobre o Papa Júlio II , pessoa de personalidade centralizadora e decidida, ter-lhe dado carta branca para fazer o que quisesse na obra do teto da capela, a verdade é que nunca saberemos o que aconteceu com precisão e certeza. Podemos apenas imaginar os dilemas enfrentados pelo artista, pois ao que nos parece, por não ser tão afeito a este tipo de trabalho e por ter outras demandas em andamento, Michelângelo tinha, desde o início, a intenção de finalizar a encomenda o mais rápido possível e a maneira mais fácil de fazê-lo seria contratando a mão-de-obra de mestres experientes neste tipo de obra, deixando-os a cargo da execução, enquanto a criação e a supervisão seriam suas, contudo, sabemos que o artista tinha uma tendência à avareza, o que dificilmente o faria contratar mão-de-obra especializada e cara para um projeto tão grande como esse, e que implicaria não só na presença de mestres como também de operários. 

Há relatos de Giorgio Vasari que corroboram a história de que o Grande Mestre teria contratado outros florentinos para colaborar no trabalho, segundo o qual, temos que Michelângelo "chamou alguns amigos de Florença, não só para que ajudassem,, mas também para ver de que modo trabalhavam em afresco, no qual alguns eram muito práticos" e isso coincide com a descoberta de restauradores na recente década de 1980, na qual puderam observar o primeiro afresco danificado pelo mofo e o atual, e puderam inferir que na pintura que prevaleceu no teto, as figuras centrais claramente foram executadas por ele, porém, muitas figuras em volta foram atribuídas a outros artistas como Ganacci e Bugiardini, que segundo Vasari, compunham o grupo de florentinos contratados pelo pintor.  

Apesar das vultosas somas que acumulou ao longo da vida das inúmeras propriedades que adquiriu, viver de forma monástica. Seu inventário de morte consta uma cama de ferro com um colchão de palhas e três de lã, algumas cobertas de lã e, uma pele de cordeiro e um dossel de linho, uma boa quantidade de roupas, inclusive roupas de cama e de baixo que apesar da simplicidade eram feitas dos melhores e mais caros tecidos florentinos e importados, alguns desenhos e poemas, muitos dos quais parcialmente queimados, alguns barris de água, vinho e vinagre, duas grandes estátuas inconclusas e uma arca de nogueira na qual continha dois sacos  jarros de cobre com a quantidade de 8289 ducados e scudi de ouro, além de moedas de prata, para se ter uma idéia da equivalência desses valores, quinze anos antes, a arquiduquesa Eleonora de Toledo dos Médicis, esposa do granduca da Toscana Cosimo I dos Médicis, comprou a esplêndida propriedade da Família dos Pitti do outro lado do Rio Arno com o imenso Jardim de Boboli, por 9000 scudi de ouro. Isso significa que apesar da pequena fortuna acumulada em casa pelo artista seu modo de vida era absolutamente contrário a todo tipo de desperdício, excesso ou banalidade.

Essas contradições, muitas vezes, faziam com que o estado de ânimo do artista ficasse muito debilitado e ele oscilava entre a tristeza, o isolamento e a ira. O fim de janeiro de 1509 foi um desses momentos, embora necessitasse de mais dinheiro, não tinha coragem de pedir outro adiantamento ao Papa, e, em carta que escreveu ao pai, disse: "não me parece que meu trabalho esteja avançando a ponto de fazer jus a isso. Isso deve ser dificuldade do trabalho e também porque não é minha profissão. Em consequência, perco tempo sem resultados. Que Deus me ajude." Neste período ele havia demitido o antigo amigo Jacopo, e este já tinha falado mal dele por toda a Roma e, provavelmente, por Florença também; esses comentários chegaram até seus ouvidos e o deixaram ainda mais deprimido. Ainda neste período, Michelângelo procurou o próprio Papa e chegou a dizer, literalmente: " essa não é minha arte; o que fiz está estragado; e, se não acreditais, podeis mandar examiná-lo", ao que parece, foi quando Júlio II chamou Giuliano da Sangallo, artista florentino também comissionado tanto pelos Médicis como pela Santa Sé, que já havia construído muito em Roma, para dar seu parecer técnico sobre os estragos no afresco anteriormente realizado e danificado pelo mofo, fracasso ao qual Sangallo atribuiu o uso de gesso muito úmido. Dado o veredicto do especialista, Della Rovere não mais quis saber de desculpas da parte de Michelângelo para se afastar da empreitada, o que justificaria que o Dilúvio tivesse sido pintado executado rapidamente e por muitas mãos.

Com a obrigação de terminar a obra e a impossibilidade de pedir mais dinheiro ao Papa pelo próprio estágio em que esta se apresentava, nos coloca outro ponto: seria seu caráter avarento capaz de dividir o pouco que tinha referente a seu pagamento com outros mestres tão qualificados e caros como estes citados? Sua personalidade vaidosa e centralizadora seria capaz de compartilhar as glórias com outros artistas? 

O que sabemos, ainda pelos registros de Vasari é que: "Tendo começado o trabalho, Michelângelo pediu-lhes que produzissem exemplos do que eram capazes de fazer. Mas, ao ver que não era nada daquilo o que ele queria, ficou insatisfeito e numa manhã pôs na cabeça que ia jogar fora tudo o que eles tinham feito. Trancou-se na capela, recusando-se a deixá-los entrar, e nunca mais deixou que eles o vissem, mesmo quando estava em casa". Apesar de exagerado, confere com relatos sobre a ira combinada ao ostracismo quase anti-social do artista, assim como posteriores cartas enviadas ao seu pai, nas quais dizia saber que se espalhavam boatos em Florença sobre a sua morte (provavelmente termo adotado como metáfora).

A única coisa da qual temos certeza é que esta obra entrou para a História da Arte como uma das mais reproduzidas por artistas clássicos e pela chamada Art Pop, sendo popularizada por meios vários, e hoje, a reconhecemos com um dos grandes legados do mecenato da Família Médicis e da genialidade de Michelângelo para a Humanidade.


Bibliografia : CESATI, F. I  Medici: Storia di una Dinastia Europea. Firenze: Mandragora, 1999.
                         GAYFORD, M. Michelangelo: uma vida épica. São Paulo: Cosac Naify, 2015. 
                          LONGHI, R. Breve História, mas Verídica da Pintura Italiana. São Paulo: Cosac Naify, 2015

                          
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